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Entrevista | Ricardo Saboia: O arquiteto para além de idealizador da concepção arquitetônica

Ricardo Saboia, arquiteto

O terminal marítimo de passageiros, do porto de Fortaleza, foi destaque na edição 430 da revista Projeto Design. Assinado pelo escritório Architectus, dos arquitetos Alexandre Landim, Ricardo Saboia, Elton Timbó e Mariana Furlani, o projeto foi detalhado pela publicação, sendo ressaltado o fato da obra, prevista para a Copa do Mundo de 2014, ter sido concluída dentro do prazo. Em entrevista à Assessoria de Comunicação (ascom) do CAU/CE, Ricardo Saboia explica que uma das razões de tal feito foi a capacidade de “pensar em todos os aspectos – construtivos, executivos, de custo, de engenharia, etc.”.

1. Ascom – Como sabemos, muitas obras previstas para a Copa do Mundo de 2014 não foram concluídas. O terminal marítimo é uma exceção. Você atribui o fato às características do projeto?

RS – Não às características do projeto em si, por mais que elas tenham facilitado na modulação e geometria, mas a dois outros fatores. O primeiro deles foi a capacidade da empresa (Architectus) de resolver problemas de projeto e obra, pois esse é o seu objetivo, pensar em todos os aspectos – construtivos, executivos, de custo, de engenharia, etc. – sem parar no clássico papel do arquiteto idealizador, entretanto, afastado da realidade da construção. O outro fator foi a coincidência de termos ganhado uma licitação de projetos da Companhia Docas do Ceará (sociedade de economia mista, vinculada à SEP/PR, que realiza a administração e a exploração comercial do Porto de Fortaleza, atuando como Autoridade Portuária) cerca de 1 ano antes, quando ela recebeu a incumbência por parte da Secretaria de Portos (Secretaria de Portos da Presidência da República – SEP/PR) de projetar o Terminal. Várias outras obras da Copa esbarraram com a incapacidade dos órgãos públicos em fazer as licitações de projetos a tempo para as obras.

2. Ascom – Mas, de qualquer forma, houve uma preocupação do escritório em elaborar um projeto que pudesse ficar pronto no tempo previsto?

RS – Sim, com certeza. Inclusive esse parâmetro mudou algumas decisões projetuais do estudo preliminar: a cobertura teria dupla curvatura – longitudinal e transversal – e, como seria coberta com manta termoplástica, garantindo a estanqueidade final, isso geraria uma forma parecida com uma casca de inseto – não que houvesse uma mínima referência biológica – para melhorar o sombreamento das fachadas envidraçadas. Essa curvatura necessitaria de calandragem das treliças e perfis metálicos, que seria mais caro e muito mais demorado que perfis retilíneos, o que, ao final, foi adotado.

3. Ascom – Que características do projeto facilitaram sua execução?

RS – Modulação, modulação e modulação. 1,20m x 1,20m básico, com estruturas de 8,40m a 16,80m. Essa rigidez vai desde piso, forro, drywall, vidros, estrutura metálica, sendo cada elemento projetado para gerar perda mínima e otimizar recursos. Apenas partes menores do projeto tinham geometrias distintas (curvas e chanfros), que diminuíam essa otimização.

4. Ascom – Tendo em vista a viabilidade do projeto para ser executado no prazo, vocês tiveram de lidar com alguma dificuldade específica?

RS – A primeira foi a interface entre o projeto do terminal e o projeto do cais múltiplo, uso feito por outra empresa. Além disso, a Docas estabeleceu parâmetros de operação para esse cais que foram sendo passadas aos poucos durante o projeto, o que levou a certos entraves na solução de fluxos e atribuições. Outro ponto crítico foi a interlocução com todos os agentes públicos envolvidos (Polícia Federal, Anvisa, Juizado de Menores, Portos, Vigiagro, etc.), além dos futuros operadores. Era complicada a agenda de definições, já que os profissionais dos órgãos não tinham parâmetros de análise ou parâmetros para definir o que precisavam. Essa foi uma atribuição penosa para a empresa, que teve de fazer visitas a terminais nos EUA, Europa e Brasil para observar a lógica de funcionamento adequada em cada realidade e depois convencer localmente. Outra dificuldade foi frequentemente pensar em soluções projetuais que pudessem ser viabilizadas na obra e com custos existentes dentro das planilhas de custos oficiais.

5. Ascom – O terminal marítimo apresenta diversos usos além da primeira finalidade, como organização de eventos, exposições e festas. Você considera que projetos concebidos para ocupação mista são necessários para determinados espaços terem usos mais contínuos?

RS – Sem dúvida. E, nesse caso, era essencial. Devido à demanda sazonal do movimento de transatlânticos na América do Sul – funcionando de outubro a março, quando o hemisfério norte está em baixa estação –, o Terminal teria que, desde o princípio, funcionar como espaço multiuso, atendendo tanto a atividade do turismo marítimo como servindo de espaço para eventos, exposições, festas, mostras, etc. Juntamente com a logística das operações de receptivo, que mudam de acordo com a operação principal no horário, os espaços deveriam proporcionar a maior flexibilidade possível de rearranjos de layouts de mobiliários, de portais detectores, formadores de fila, balcões de receptivo. Como no verão do hemisfério norte há muita demanda, praticamente param de ter navios aqui. Portanto, o edifício precisaria ser usado de outra maneira no período de maio a outubro.

6. Ascom – Ainda com relação aos espaços multiuso, seriam também uma forma de aproximar as pessoas desses espaços menos utilizados em determinados períodos e fazer a sociedade entender que a Arquitetura pode ser mais funcional?

RS – Isso é mais questionável, pois existem “programas e programas”. Não se pode imaginar que determinados edifícios possam mudar ou promover algo que a estrutura social ou cultural não absorva, mesmo que suas funções primárias o permitam, pois o edifício deve primeiramente funcionar para aquilo a que se propõe. Ainda mais em um País com recursos escassos. Depois, pode-se tentar atingir objetivos secundários. Cada projeto tem sua especificidade de uso e nível de acesso, desde uma universidade, que deve ser o mais democrática possível, ou um museu, até um complexo laboratorial e suas inúmeras restrições de operação.

No caso do Terminal, se, por um lado, deveria ser múltiplo uso como o cais, para poder se pagar ao longo do tempo, ele também tem a chamada área alfandegada, que é estritamente regulada e portanto de acesso controlado. A saída foi pensá-lo como um grande container (e espaço múltiplo), e, somente após as portas do cais, se estaria na área alfandegada. Por isso, outros desenhos mais permeáveis e vazados, que pudessem induzir a tão desejada inter-relação entre público e privado, não seriam adequados à normativa internacional portuária (ISPS – Code) a não ser que fosse um cais dedicado exclusivamente à passageiros.

7. Ascom – De acordo com a matéria publicada na Revista Projeto, foi solicitada uma estética marcante para o terminal marítimo de passageiros. Partindo do ponto de vista de que a ideia de estética marcante é subjetiva, o que você define como tal?

RS – Os primeiros estudos perseguiam uma estrutura modular mais racional, permitindo uma expansão modular ao longo do cais futuramente. No entanto, a Secretaria de Portos na época, junto com a Companhia Docas do Ceará, contratante direta da licitação, solicitou essa forma mais marcante esteticamente como expressão do posicionamento do País para o visitante internacional – a velha espetacularização de edifícios-ícones que as cidades turísticas tentam vender com seus arquitetos-estrelas.

Como não sabemos trabalhar com formas não-euclidianas, pois o Brasil não tem corpo grande de indústria de construção civil, nem engenharia especializada, nem construtoras e operários capacitados, tivemos de pensar em algo formalmente dinâmico, tentando não cair em formalismos gratuitos ou simbolismos, mas que tivesse conceito construtivo e que fosse possível executar no prazo. Não compactuamos com a necessidade de ser vitrine. Marcante, para nós, depende do contexto. No caso cearense, um edifício do Tadao Ando (arquiteto japonês – 13 de setembro de 1941 – famoso por valorizar formas e geometrias simples) seria marcante no meio de tanta cosmética…

Terminal marítimo de passageiros, Fortaleza
Imagem: Arcoweb | Foto: Joana França

8. Ascom – O terminal marítimo de passageiros teve destaque – com fotos na capa e detalhamento do projeto na matéria – em uma revista de projeção nacional. Você considera que a arquitetura cearense é devidamente reconhecida?

RS – Talvez não se trate do local onde se está fazendo Arquitetura, mas da relevância do que se faz desde a importância do projeto – e estando no Nordeste os projetos tendem a ser menos importantes – até o nível de comprometimento do profissional e a qualidade na execução da obra. Pessoalmente, não identifico uma injustiça em relação à falta de destaque para os projetos feitos no Ceará, no Nordeste e no Brasil. Estamos numa verdadeira entressafra de projetos e projetistas. Existe, lógico, uma maior facilidade para revistas do Sudeste publicarem trabalhos de profissionais de lá, por todos os aspectos envolvidos, desde os pessoais até os financeiros. A Architectus recebe, há muito tempo, pedidos de revistas para publicar projetos. Esse é o quinto divulgado.

9. Ascom – E a Arquitetura, de um modo geral, é valorizada pela sociedade? A pessoas sabem e entendem a função dos arquitetos e urbanistas?

RS – É uma pergunta muito ampla e difícil de ser respondida. Como estamos vivendo a civilização do espetáculo, o valor da coisa não está em si, mas no que ela simboliza. Não importa a qualidade do projeto, o custo, a pertinência, mas se quem o fez tem o respaldo no status quo dos promotores envolvidos. Quase sempre se quer a novidade e a superfície cosmética das coisas, e não o conteúdo. Dentro desse contexto, o papel do arquiteto ou fica de estrela que tudo sabe, tudo manda e que, na verdade, vira uma mera marca de si mesmo, ou o restante da profissão fica, mais ou menos, servil ao que está na moda. Portanto, se os valores sociais envolvidos são esses, o profissional que joga esse jogo está simplesmente adequado ao seu habitat, sem nenhuma crítica a isso.

10. Ascom – Seria possível mudar esse contexto?

RS – Se é papel do arquiteto funcionar como um educador da sociedade ou de mudar isso, eu acho bastante utópico. Pontualmente, entretanto, valem algumas batalhas, algumas tentativas para mostrar que nem tudo pode ser apenas fachada, literalmente. Nosso mercado é de empresas de engenharia que ganham o pacote de projetos e contratam arquitetos para fazer “aquelas frescuras de arquiteto”. Percebemos, há muito tempo, que faltava a elas o papel de um coordenador geral do empreendimento, com visão global de tudo. Por natureza, os engenheiros se especializam e acabam por resolverem seus problemas cada um em seu “quintal”, sem olhar para o todo e as alternativas conjuntas. O arquiteto é o generalista por excelência. Então, passamos (falando especificamente da Architectus) a gerenciar os projetos. E a concepção arquitetônica, por mais importante que seja, leva 3% do tempo. O restante foi aprender tudo que fosse possível em engenharia e obra para resolver os problemas dos contratantes.

Com certeza, vários profissionais são capazes de fazer bons projetos de Arquitetura, mas pouquíssimos têm o interesse, a motivação e a paciência de resolver todos os tipos de problemas que surgem tanto em projeto como em obra. Acredito que quem projeta Arquitetura deveria ser o principal responsável e o mais qualificado para passar por tudo isso, mas não sei se muitos têm essa visão. A função de líder ou responsável de projeto e obra deveria ser maior do arquiteto e, se assim fosse assumida, com certeza, seríamos mais valorizados.

Uma resposta

  1. Fazer bons projetos de arquitetura e ter a função de líder ou responsável de projeto e obra é uma questão de amadurecimento: interesse para que se efetize o custo de obra e solicitações, motivação para adequar-se a ida do arquiteto ao terreno e viabilizar as implicações estruturais e a paciência para contatar as soluções da forma concebida, na conclusão de anteprojeto, com afinidades compatível entre os usos de programas aí existentes.

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